A pedidos.
Quando estava saindo da infância,
lá na longínqua Benguela, minha cidade natal de tantas lembranças, tínhamos por
hábito sair para a rua, manhã cedo do dia 25, o de Natal, com nossos brinquedos
novos e ao mesmo tempo que curtíamos, os mostrávamos para os vizinhos das casas
à volta. Na época do fato que vou contar, eu já não acreditava mais em Papai
Noel ou pai Natal como se diz lá, mas se mantinha a tradição de não se abrir os
presentes na noite de 24. Se passava toda a agonia e expectativa da noite de 24
durante a consoada e festejos familiares, íamos à missa do Galo à meia noite,
voltávamos, se ceava e se ia deitar sem os presentes nos sapatos debaixo da
árvore de Natal, o popular pinheirinho daqui. Só ao acordar na manhã de 25 se
achavam os presentes em cima do sapatinho de cada um. Pelo menos era assim na
minha família, se controlava a ansiedade e se esperava que o Pai Natal descesse
nas chaminés inexistentes e desnecessárias nas casas sem lareira de um clima de
40 graus em dezembro, ou por alguma janela aberta caso alguma criança se
questionasse e questionasse os adultos como iria Papai Noel descer pela chaminé
se além de não existir uma chaminé na sala, a da cozinha era bem estreita
apenas necessária para a saída de alguma fumaça produzida pela comida.
Bom, era assim ou como a minha
memória me diz que eram meus Natais em Benguela. Aquelas manhãs gostosas, onde
se acordava bem cedo e logo se ia para a rua para brincar com os vizinhos.
Muito bom era. Saber se o Papai Noel tinha lido cartinhas e atendido os pedidos
seus e dos amigos.
Num desses últimos Natais, meu
pedido era uma bola preta de borracha, com letras e logotipo pintados de
amarelo. Não era uma simples bola, era a bola ideal, pois poderíamos jogar na
areia da praia ela pulava e não se molhava com a água, podíamos jogar na rua,
onde sempre jogávamos e também poderias jogar basquete nas calçadas as
forquilhas nos troncos das acácias amarelas de cestas. E eventualmente, quase
sempre, fazer o corredor da casa de quadra multiuso. Além de todas essas
utilidades, ela era muito bonita. Inesquecível aquele preto forte, logo de tartaruga,
nome e frases em alemão amarelas.
Infelizmente naquele ano Papai
Noel não me deu meu objeto de desejo, recebi um caminhão Unimog amarelo muito
lindo! Meus pais justificaram a decisão deles dizendo que eu já tinha ganho
duas, e as tinha perdido, além dos vizinhos reclamarem muito que nossos disputadíssimos
clássicos na rua provocavam estragos nos jardins deles, quando pulávamos os
muros para recuperar a bola nos chutes sem direção e nem víamos as coitadas das
flores nos canteiros dos vizinhos. Aceitei meio contrariado a justificativa,
realmente tinha perdidos duas bolas desde o Natal do ano anterior. Nada a
fazer! Mas o caminhão também me agradou muito.
Importante justificar como eu
tinha perdido as duas minhas lindas bolas pretas alemãs compradas na Drogaria
Central, com letras amarelas e logo de tartaruga. A primeira, que tinha ganho
no Natal anterior, infortunadamente tinha caída nas mãos de um policial. A
vizinha da frente, a para mim e por motivos negativos inesquecível Dona Zuze,
tinha chamado a polícia porque ao jogarmos na frente da casa dela fazíamos muito
barulho. Minha memória me diz para sempre que atrapalhamos a sesta dela, adultos
disseram e tentaram me convencer que ela estava certa ao chamar a polícia porque
estava doente, mas quem irá saber? Particularmente, prefiro acreditar na
memória de um menino que perdeu sua companheira fiel, sua bola preta alemã, com
letras amarelas e tartaruga! Ao escutar o grito “Polícia, fujam”, eu peguei a
minha bola e em vez de correr para dentro de casa, pensei em fugir pela rua do
outro lado porque pensei, eles vão bater na minha casa. Ledo engano, ao virar a
esquina caí nas mãos de outro policial que vinha pelo outro lado, eles tinham nos
cercado pelas quatro ruas do cruzamento onde morava. Tal qual um pirulito,
assim ele tirou a bola da minha mão e eu estupefato, raivoso, dolorido o vi
tirar um canivete enorme, cortar minha bola em duas metades, me devolver
dizendo, vai lá jogar de novo! De imediato joguei os dois pedaços com força aos
pés dele e corri para chorar de raiva em casa perante meus amigos que tinham
saído dos seus esconderijos. Passei noites traumatizado não tanto pela visão
das duas metades da minha querida bola no chão, mais pela falta que sentia dela.
Além do castigo que levei em casa, esse menos traumático pois não me lembro se
foi castigo ou umas reguadas de colher de pau. Ou talvez nem castigo houve, já
que nem lembro. Agora, a minha bola preta alemã, com letras amarelas e tartaruga,
minha companheira de 24 horas até hoje, em noites de insônia me vem na
lembrança. Nunca mais vi uma bola dessas na vida, assim como nunca mais voltei
às praias onde cresci, ao lugar onde nasci, à minha cidade natal. Às vezes acho
que deveria ter trazido uma dessas para ter em casa, seria muito útil quando se
abre aquele buraco fundo dentro do seu peito e você não sabe direito o que sente
nem o que fazer e vai gritar vestido e tudo, debaixo do chuveiro. Mas refugiado
não tem muitas opções para carregar nem para escolher, carrega apenas suas
memórias, suas dores. Sair fugindo de uma guerra, não é opção é a última
escolha. E a outra bola como eu perdi?
A outra bola preta alemã, com
letras amarelas e logo de tartaruga comprada na Drogaria Central, eu ganhei
meses depois, no meu aniversário. Não lembro mais quem me deu, mas o que importa
é que ganhei de novo uma companheira. Com essa fui mais cauteloso já. Não
jogava na rua, jogava na praia, dentro de casa ou no quintal. Só que jogar no
quintal tínhamos o perigo do vizinho do lado. Se a bola fosse para a casa do
lado teríamos que pular rápido, o que era dificultado pois o muro lateral era
alto ou pular pelo muro frontal da casa o que demorava mais e poderia dar tempo
ao vizinho aparecer de repente e ficar com a bola. Esse vizinho era uma figura
muito estranha, muito fechado, taciturno. Calado, quieto, não conversava com
ninguém, andava sempre vestido de preto e com um casaco grosso, pesado, coisa
muito estranha para um país africano com temperaturas muito altas. Apesar de
ser muito respeitado pelos adultos, essa figura era estranha e um pouco
assustadora para nós. Se dizia que tinha perdido toda família num incêndio de
verão em Portugal e para esquecer tinha ido para Angola. Isso justificava
completamente a rigidez de expressão do rosto, a sisudez constante, a solidão
dele e o fato de nunca vermos as cortinas das janelas da casa abertas. Sempre tudo
muito fechado. Só o víamos muito cedo saindo para o trabalho ou tarde voltando
do trabalho. Nos fins de semana nada dele. Era desse vizinho que eu tinha medo,
não dele especificamente, mas de não ser rápido o suficiente ao pular o muro e
ele ficar com minha segunda bola preta alemã, de letras amarelas e logo de
tartaruga. Dizem que aquilo que mais tememos atraímos e acontece, e foi exatamente
o que aconteceu. Um dia de semana achando que ele não estivesse em casa em vez
de pular o muro lateral fui calmamente para pular o muro da frente e pular não
vi mais minha bola. Ele tinha sido mais rápido e minha querida companheira
tinha ficado presa e nem as cortinas das janelas se mexiam, ele tinha sido
muito rápido e sutil. Nem adiantava pedir ao meu pai para bater lá e pedir, já
estava cansado de fazer isso e quis me deixar de quarentena. Muito menos eu ir
lá bater, tinha muito medo de receber duas metades e não a minha bola preta
alemã, de letras amarelas e logo de tartaruga. O tempo foi passando, eu fui me
conformando e faltando poucos meses para o Natal achei por bem esperar pela
bondade do Pai Natal. Me enganei, não ganhei minha tão desejada bola e sim o caminhão
Unimog que me preparava para mostrar aos vizinhos e brincar na rua.
Estou brincado na calçada quando
algo me chama a atenção no quintal do vizinho do lado. O que era? A minha bola!
Lá estava ela. Fiquei surpreso estático, me encostei no muro baixo não
acreditando no que via. Olhando a casa no fundo do terreno vi o rosto fechado
do meu vizinho estranho olhando para mim fixamente. Fique estático olhando ele
sem saber o que fazer. O que me pareceu uma eternidade depois ele fez um sinal leve
de rosto me indicando a bola com o queixo, me incentivando a pegá-la. Foi
preciso ele repetir umas 3 vezes o gesto para eu ganhar coragem para pular o
muro muito lentamente e mais lentamente ainda pegar a bola sem tirar os olhos
do meu vizinho. Quando estou me levantando, sem tirar os olhos dele, com a bola
nas mãos e me preparando para girar rápido e correr para a rua vejo se abrir um
leve sorriso naquele rosto marcado e duro. Estático sem saber muito bem o que
fazer me tocou aquele leve sorriso, me veio na mente o que se falava da dor
daquele homem e muito timidamente retribui o sorriso e agradeci. Me virei muito
confuso e devagar voltei par a calçada sem saber muito bem o que pensar. Meu
coração disparado, minha mente confusa com o gesto amistoso e o sorriso amoroso
de quem povoava meus pesadelos e nas minhas mãos a minha querida bola preta
alemã, de letras amarelas e logo de tartaruga comprada na Drogaria Central.
Meus ouvidos zumbiam, tinha saído muito rápido do pânico e pavor para o carinho
e compreensão de quem menos esperava. Achei que ouvi até um Oh Oh Oh típico do
bom velhinho, mas essa parte consigo calar aquele menino tímido e confuso
daquela manhã de dia 25 que me garante a veracidade disso, lá da longínqua e
amada Benguela.
Ah depois disso não virava mais a
cara e fugiu quando via o vizinho ao longe. Até olhava e dissimulava um sorriso
quando ele passava. E aquela bola? Essa se gastou de tanto uso e de tanto cair
no quintal do vizinho!
FELIZ E SANTO NATAL!!
Nico Moreira.'.