Depois daquele Natal nunca mais fui o
mesmo. Ele foi tão marcante que até hoje, sempre que o pisca-pisca das
decorações de Natal começa a diminuir o peso com que as noites sufocam e oprimem a cidade, toma conta de mim
uma confusão interior, um misto de angústia, talvez frustação ou será mesmo uma
certa vergonha ? Medo? Culpa? Não, acho que é uma impotência intencional. “O
que posso eu, um simples cidadão comum,
fazer para melhorar o mundo ? “ No fundo eu sei que posso fazer algo,
mas as desculpas para não fazer e ignorar o que me rodeia são no mínimo mil
vezes maiores que os motivos para dar apenas um pequeno passo, fazer só uma
pequena ação, apenas que seja uma simples palavra. Além do que, só nesta época me assaltam todos estes sentimentos e
lembraças. Este conflito interior só por causa daquele Natal! Mas tenho que
concordar que teria que ser um Natal no
mínimo diferente dos outros. Era o segundo Natal como desempregado! Essa pele
peçonhenta de derrotado que a sociedade logo veste num desempregado já grudava
em mim fazia tanto tempo que eu achava que não ia sair nunca mais. Já estava me
acostumando a ser olhado meio de lado, uma mistura de desprezo com repulsa.
Desgraça pega, chô sai pra lá, negativismo, derrota para bem longe. Numa dessas
ele ainda vai pedir um favor, se der um pouco mais de atenção periga até pedir dinheiro
emprestado. Era assim que eu me via nos olhos dos outros. Dizem que a vida é um
espelho, você é visto e tratado pelos outros do jeito que você se considera e
vê. Eu não acreditava que pudesse ser capaz de me diminuir e punir tanto e de
maneira tal cruel, para o mundo me devolver toda aquela indiferença, desprezo e
sofrimento por que estava passando. Mas este é um conto de Natal, tem que falar
de amor, fraternidade e paz na terra aos homens de boa vontade, que nesta época
acredito que são todos, pelo menos é o que dizem. Apesar de também estar
desempregado, no ano anterior, não tinha sido tão difícil. A demissão fora só
há dois meses atrás, ainda havia o dinheiro da indenização, a perplexidade e o
desgosto de ter sido apanhado pela re-engenharia estavam um pouco diminuidos
pelos incentivos dos amigos. “Relaxa. Curte umas férias. Agora o País pára
mesmo. Depois do Carnaval, quando começa o ano de verdade, achas alguma coisa
melhor, eu tenho certeza”. “Será ? “ “Sim, claro!” “Acho que tens razão. Nunca
fui demitido antes”. “Não fui só eu. Eles acabaram com todos os gerentes
administrativos, agora um faz o trabalho de quatro”.”Estou falando, não foi por
incompetência...”. “É, eles até me deram uma carta de recomendação”. “Viu só
..” E o Natal passou, veio o fim de ano, a indenização se foi, veio o Carnaval,
a Páscoa. O que será que está acontecendo ? Deve ser uma crise passageira. O
fundo de garantia acabou. Várias entrevistas, outros tantos chás de cadeira
depois o desespero começou a chegar.O condomínio em atraso. “É temporário, mês
que vem coloco em dia”. Um emprétimo do pai. “Tenho certeza que é por pouco
tempo, até sexta-feira vão me dar uma resposta, fiz uma entrevista semana
passada, estou com a maior fé”. Várias sextas depois me convenci que uma
ligação, mesmo dizendo que ainda não foi desta vez teria sido melhor que passar
estes dias sonhando e acelerando minha pulsação a cada toque do telefone. Será
que as pessoas de Recrutamento já ficaram esperando uma resposta que nunca
chegou? Acho que não. Auto-estima acabando, humilhações, o BNH atrasado,
domingos e domingos esperando o jornal, a mensalidade da escola não foi paga.
“Não temos mais nada para comer, o que é que eu faço ?” A câmera de vídeo se
foi, o videocassete também. O colégio está reclamando de novo. Desta vez foi a
sogra que emprestou. O orgulho cada vez mais ferido. “Vamos ter que jantar na
casa dos teus pais”. Agora foi a vez do telefone, mais entrevistas, mais
esperas, esperanças desfeitas. O fundo do poço não chega nunca! A auto-estima
não existe mais. “Tenho que ser forte, minha família depende de mim”. Meu Deus,
o que está acontecendo ? A dúvida aumenta, será que vou sair desta ? Acho que
não. É só jogar o carro na frente daquele caminhão que vem vindo que tudo
termina. Na velocidade que estamos não sobra nada. Vou me informar. Não vai dar
certo, o seguro não paga suicídio. Chegou a vez do carro. “Mas eu preciso de um
emprego”. “Infelizmente o senhor é demais para o cargo”. Não adiantou, não dão
oportunidade de começar de baixo. Com esta idade é mais difícil. O último
recurso, a casa. O último bem. Quando um homem não consegue dar nem casa nem
comida para a sua família a situação é péssima. “Eu juro que estou tentando, já
fiz vários bicos, já tentei várias coisas”, nada. A sociedade não perdoa. Fomos
educados assim, não existe chance para os derrotados. Ninguém se importa. É um
fracassado. O bem mais precioso se foi, não valho nada, sou um pária da sociedade,
sou um peso para a minha família, morto valeria mais. Porquê tudo isto ? O que
o mundo está querendo me ensinar, quanto mais preciso sofrer ? A quanto mais
preciso me humilhar e submeter ? Eu sei, eu prometo que da próxima vez eu darei
mais valor ao que tenho, mas por favor me dêem uma última oportunidade. Eu
começo tudo outra vez, mas pelo menos me consigam um emprego. Sem trabalho, sem
renda um homem não vale nada. Agora eu entendo os desesperados os suicídas, os
excluidos. O sofrimento é devastador, quando ele é grande, corroe tudo
internamente que cria um vazio interior enorme. Mas não é um vazio sem nada é
um vazio de dor, uma tristeza e uma desesperança totais. Era assim que eu me
sentia naquele 23 de Dezembro. Quando peguei o ônibus para o centro, uma
solidão imensa tomava conta de mim. Só tinha na mente uma preocupação, como
explicar para as minhas filhas que não tinha dinheiro para comprar presentes de
Natal, que a vida não era essa felicidade das propagandas da TV. O mundo todo
as fazia pensar que o Papai Noel existe e iria trazer presentes para elas. É
assim que funciona a nossa sociedade de consumo, na base das compras, dos
presentes, quanto mais você gosta, mais e melhores presentes você oferece. Se
você não tem nada para dar, você não ama. Era isso que elas viam e ouviam em
todos os lugares. Vai ser um choque acabar a fantasia só porque não tenho
presentes para dar. Eu tentava me lembrar de quando descobri que o Papai Noel
não existe, talvez não tenha sido de maneira tão dolorosa pois não me lembrava.
Como os outros se lembram ? Hoje queria acreditar que Papai Noel existe e que
me traria algum emprego de presente. Eu precisava ter esta esperança, algo
teria que provocar uma melhora na minha fé no mundo em principalmente em mim.
Era difícil pois olhava pela janela do ônibus, via aquela multidão com pacotes
e sacolas e pensava como é ingrata esta época, eu desejando esquecer os meus
problemas, voltar atrás no tempo, e todo o mundo alegre e contente. Mundo
injusto. Nunca tinha sentido tanta revolta. Era este o meu estado de espírito
quando aquele velho de cabelo e barbas brancas, veio se sentar do meu lado.
- Bom dia !
Respondi um oi
meu entredentes meu grunhido. Era o que me faltava, ter que aguentar alguém do
meu lado para conversar. Logo hoje ! Não se intimidando, complementou
sorridente:
- Feliz Natal !
Era só o que
faltava. Precisei me controlar. Existe ofensa maior que encontrar alguém feliz
quando se está aborrecido ou deprimido? Para mim não existe. Depois de contar
até 200, olhei para ele meio de lado e simulei uma resposta.
- Humm, humm.
Mas o velho
bonachão era teimoso ou fez que não percebeu a minha indiferença.
Voltou à
carga:
- Esta época do ano é maravilhosa.
Fiquei quieto. A educação não me obrigava
a responder, foi um afirmação.
Quando pensava que o meu silêncio o
tinham feito desistir, ele atacou de novo:
- O senhor não acha que as pessoas ficam
diferentes no Natal ?
- Diferentes como ? Respondi. Saiu sem
querer. Era isso que ele queria, uma resposta minha, iniciar uma conversa. Ele
continuou já se animando.
- O espírito natalino torna as pessoas
mais alegres, mais solidárias, mais amigas.
- Depende, eu não concordo com o senhor.
- Depende !? Depende do quê ? Agora ele pegou a minha isca.
- Depende de como a pessoa se sinta, o
que estiver passando no momento. Para quem está desempregado por exemplo. Como
será que esse monte de gente se sente?
- Concordo, para essas pessoas é um pouco
mais difícil. Mas não deixa de ser uma oportunidade deles renovarem esperanças,
aproveitarem o espírito geral e aumentarem a fé e a confiança.
- Até concordo com o senhor se o espírito
do Natal fosse realmente esse que o senhor está pensando, mas hoje em dia não é
assim. O Natal virou um comércio, o que se vê é compra, compra, compra, ninguém
mais está preocupado com esse tal espírito do Natal!
- No geral sim, ninguém se preocupa mais
com o verdadeiro significado do Natal. Mas ainda existe um pouco de amor e
solidariedade apesar de tudo.
- Então, nesse espírito comercial como é
que fica quem não tem dinheiro para dar presentes ? Como vão explicar isso para
os filhos ?
- Eles vão ter que explicar a realidade.
As crianças são bobas, percebem tudo que se passa. Elas não são muito
exigentes. Pode reparar, quando encontram o Papai Noel ficam felizes com uma bala e um pirulito.
Tive que concordar Ӄ, o senhor tem
razão”.
- Mais importante que dar presentes é dar
amor, dar carinho, é retrubiur a quem nos ama. É dizer que gostamos dos outros,
é fazer um elogio. Às vezes uma simples palavra de amor, de conforto vale muito
mais que o maior presente do mundo. Principalmente para quem está sofrendo.
Fiquei calado, não me ocorreu nada para
dizer. Estava pensando no que ele me disse. Ultimamente estava demais absorvido
em mim, nos meus problemas, me esquecera que havia alguém que poderia me
apoiar, que gostava de mim. Parece que ele percebeu que tinha me tocado.
Continuou:
- Temos que nos lembrar do que estamos
comemorando no Natal. O nascimento Daquele que
veio nos dizer que todos possuimos um grande tesouro.
- Como assim ? O que será que ele estava
querendo dizer, pensei.
- Sim, temos o maior tesouro dentro do
nosso coração, a capacidade de amar. O segredo
está em sentir, criar esse sentimento de amor permanente. Acreditar com
o coração. Esse espírito de amor no coração de todos é que deve ser o
verdadeiro espírito do Natal.
Mais uma vez me calei. Ele foi se
levantando. Me estendeu a mão e disse sorrindo:
- Bom, meu amigo, vou ter que descer. Um
feliz Natal para você e sua família.
Me levantei, nos abraçamos, e respondi :
“Muito obrigado, um Feliz Natal para o senhor também”. Já de costas enquanto
ele se dirigia para a porta me pareceu escutar um “Hoo, Hoo, Hoo “ familiar.
Mas todos dizem que foi impressão minha, que estava tomado pelo espírito da
epóca. Papai Noel não me deu um emprego de presente, só algum tempo depois
voltei a trabalhar de novo, mas me deu uma visão nova, um conceito diferente de
presente, de Natal. É essa visão que agora, no Natal, vem me perturbar. Por isso, eu prometo. Neste
Natal, vou tomar coragem, largar esta indiferença. Vou dizer e sentir algo de
bom para a família, para os amigos. Perder o medo e fazer também para um
desconhecido, para alguém que precise. Pode ser que faça a diferença.
OCIN.